(C.Ⓐ-SP)Convergência Anarquista-Terrorismo Poético

terça-feira, 12 de abril de 2011

O que é o povo?

Quem é o povo?

Reflexões acerca do conceito de povo, democracia e liberdade.

No que consiste o povo? Seria este o conjunto de todos os indivíduos nascidos sobre determinado país? Ou será o povo uma ficção, uma noção abstrata usada aqui e acolá, sem muita precisão conceitual e com certo apelo ufanista? Discussões semânticas à parte, o fato que o “povo” virou lugar comum. E como todas as expressões vagas, frequentemente não traz qualquer luz ao debate, servindo de instrumento retórico ajustável a qualquer linha de argumentação. O “povo” tornou-se, literalmente, um argumento “coringa”. Por esta razão, o presente ensaio objetiva discutir não apenas o uso deletério do termo em discussões e momentos históricos relevantes, bem como evidenciar sua relação de necessidade com doutrinas coletivistas. As repercussões políticas da adoção deste termo, naturalmente, não serão ignoradas.



Quem é o povo?


Segundo a definição tradicional, povo é a comunidade humana caracterizada pela vontade dos indivíduos que a compõem de viver sob a mesma ordenação jurídica[1]. Noutras palavras, “a soma dos indivíduos juridicamente ligados a um determinado Estado, adquirindo direitos e deveres específicos desta condição”[2].



Para Cícero, aquele que cunhou o conceito, o povo (populus) não é uma aglomeração qualquer de homens, reunidos de qualquer maneira (coetus multitudinis quoque modo congregatus), mas uma aglomeração de gente associada pelo consentimento ao mesmo direito e pela utilidade comum (coetus multitudinis juris consensus et utilitatis communione sociatus) ”[3]. Opovo nasce, pois, com a res publica.



Guardadas as devidas distinções de base, os conceitos até aqui esgrimidos consagram o povo como unidade identificada de indivíduos que constituem uma sociedade politicamente organizada.


Mas a polissemia de tal termo não nos permite parar por aqui. O povo também é definido em termos estritamente estatísticos, como aglomeração de pessoas.



Numa acepção tipicamente democrata, o povo é utilizado como sinônimo de maioria relativa, de opinião pública majoritária no que se refere à escolha de questões eminentemente políticas.



Sob a perspectiva ideológica, o povo foi e é com certa freqüência sinônimo da hierarquização da sociedade ou dos indivíduos em classes, por mais que o termo (povo) em si não seja claramente expresso. Tais manifestações encontram-se desde a classe operária de Marx, que identificava o povo oprimido pelo capitalismo burguês, passando pela própria Revolução Francesa e o célebre opúsculo de Sieyès (Quést-ce que Le Tiers État?), em que não seria equivocado identificar o povo com o chamado “Terceiro Estado” que, nos dizeres revolucionários do abade, era tudo e, ao mesmo tempo, até aquele momento nada, demandando-se, pois, tornar-se alguma coisa [4].



É de se observar que tal acepção do termo povo chega intacta aos dias atuais, como o Presidente Luis Inácio da Silva[5] deixa evidente em uma de suas recentes e desastradas manifestações. Ao dizer que teria tirado o povo “da merda”, por meio de programas assistencialistas, o presidente não pretende outra coisa, senão identificar o povo com o grupo de pessoas mais pobres[6]. Neste sentido Lula não apenas quer identificar o povo, mas personificar-se neste.



O povo também é identificado, de forma perigosa, com uma massa indivisível na qual se imiscuem elementos nacionalistas e culturais. Tal fenômeno vai desde a mobilização brasileira, aparentemente inócua e inofensiva, durante a copa do mundo, momento em que a seleção é a personificação do povo brasileiro, até episódios nefastos como o regime nacional-socialista, de caráter segregacionista e totalitário[7]. O povo, aqui, é sinônimo da raça superior ariana e, não raro, do poder do Führer.



Postas essas considerações preliminares e não exaustivas, além de evidenciar a polissemia do termo, o presente escrito volta-se para uma outra questão: precisamos do conceito de povo? Ele nos é útil, seja no debate político, seja em suas consequências práticas?



Quem precisa do “povo”?
Um conceito para existir necessita satisfazer alguns requisitos, sob pena de ser dispensável e até mesmo inexistente. Em primeiro lugar, ele precisa ser claro não só por uma questão de sistematização de ideias e de afastamento de ambigüidades e obscuridades, mas para permitir um debate honesto, em que todas as partes saibam o que aquele objeto quer significar. Em segundo lugar, ele precisa ser original em relação a outros conceitos, caso contrário não há a necessidade de sua criação. Em terceiro lugar, o conceito precisa ter uma capacidade explicativa melhor que a de outros termos que se propõem a descrever e esclarecer um fenômeno. Por último, o conceito aplicado às relações humanas deve ser capaz de preservar um núcleo inatacável de liberdade do ser humano, de modo a respeitar-lhe a dignidade. Será o conceito de povo idôneo a preencher tais condições?

2.1 O conceito de povo não é claro.



Conforme esclarecido no primeiro tópico deste trabalho, o conceito de povo não é claro, pois comporta um sem-número de significados.



Tampouco um conceito jurídico é capaz de fornecer a devida clareza. Dizer que o povo consubstancia a soma ou unidade de pessoas ligadas a um território e atrelados a uma organização política não satisfaz enquanto proposição. Afinal de contas, o povo ignora os seres enquanto indivíduos e os trata apenas como um todo, uma soma? Por outro lado, que tipo de organização política rege esse ente abstrato chamado povo?



Ademais, a essência do direito é política. O direito é força, é coerção animada por interesses que podem ou não respeitar as leis naturais da liberdade humana. Tão logo os juristas em sua tola pretensão de neutralidade logram uma definição formal e aparentemente pura em termos de juridicidade, tão cedo as circunstâncias tratam de desmenti-los, permitindo a ingerência política e, por conseguinte, a ambiguidade do uso do termo “povo”.



O raciocínio é simples. O conceito jurídico de povo introduz o elemento Estado. O Estado é justamente esse princípio ativador da força que representa o Direito para a consecução de certos interesses. Se o Direito, enquanto teoria, representa o corpo pretensamente neutro da lei, das abstrações jurídicas, o Estado representa o campo do político: o campo dos interesses , dos programas políticos e dos fins supostamente elegidos pelo povo. Quando este ingrediente político adentra o frágil conceito jurídico, a polissemia anteriormente assinalada assume o comando e o povo passa a ser um conceito indeterminado suscetível do uso que melhor aprouver ao soberano.



2.2 O conceito de povo não é original.



Sob a perspectiva meramente estatística, o conceito de povo nada mais é do que aquilo que chamamos “população”.



Sob um prisma cultural e histórico, o povo nada mais é do que nação. A rigor, esta significa o conjunto de indivíduos ligados em maior ou menor grau pelas mesmas raízes históricas, traços culturais, costumes e mentalidade. A ideia de nação, por sua vez, incorpora um risco relevante de transmudar-se em nacionalismo, ufanismo e em práticas não apenas preconceituosas como segregacionistas e bélicas. O ser humano deixa de reconhecer no outro um indivíduo igualmente livre, para reputá-lo um inimigo.



O povo como parcela representativa de uma classe, seja a dos mais pobres ou não, é simplesmente um termo fora de lugar e sem o menor cabimento. É preferível o uso de grupo dos menos favorecidos, classe que aufere renda X, Y ou Z. Ao se utilizar o termo povo nessas condições, fomenta-se a rivalidade e segregação, pois se povo é só a classe X, isto significa que as demais classes não são “povo” e, de acordo com aquela definição jurídica do primeiro tópico, não seriam contempladas com direitos e deveres, pertencendo assim a um universo paralelo, a uma organização distinta. Neste particular e em circunstâncias não muito distintas da que vivemos, a famosa frase de Lincoln (governo do povo, pelo povo, para o povo) nunca foi tão hipócrita e mal colocada, visto que alguns são mais “povo” que outros.



2.3 O conceito de povo é incapaz de prover explicações coerentes.



Neste ponto, não é necessário maior aprofundamento, sendo suficiente repisar que quando utilizamos a palavra povo para designar algum grupo em especial ou alguma fonte ou raiz cultural pretensamente partilhada por todos e supostamente absolutamente verdadeira, seria mais honesto e coerente utilizarmos as palavras que de fato se ajustam ao objeto descrito.



Há, entretanto, um ponto que merece atenção. Costuma-se dizer, desde a Revolução Francesa, que em um Estado de Direito o povo possui a titularidade do poder, enquanto o parlamento, o judiciário (quando seus membros são eleitos, o que não é o caso do Brasil) e os membros do executivo possuem o exercício deste poder. Nenhuma falácia logrou convencer a tantos e dar tanto crédito à democracia como esta. Seus pontos cegos são evidentes, mas este trabalho não se furtará a uma análise.

Em primeiro lugar, é preciso enxergar os indivíduos que constituem esta massa, indevidamente chamada de povo. Indivíduos têm ideias diferentes, aspirações diferentes e princípios morais diferentes. Ao escolherem o candidato X ou Y, não fazem nada mais do que projetar esses traços distintivos naqueles. Isto significa que não existe uma entidade superior chamada povo que detém o poder. Existem indivíduos diferentes que projetam interesses distintos e, não raro, opostos, sobre certas pessoas que poderão ou não usar do poder (aqui sinônimo de coerção) para realizar aqueles interesses. Eis a primeira falha: a suposta titularidade não é de um todo, mas atomizada entre cada indivíduo. A segunda falha é: se a titularidade é atomizada, assim também é o exercício do poder. Eis a essência de nossa democracia representativa semi-direta: propriedade atomizada do poder e posse e exercício atomizados e, não raro, em descompasso com os objetivos dos respectivos titulares.



Em segundo lugar, ter poder é, de fato, exercê-lo e não apenas delegá-lo. A objeção comum neste ponto é a clássica: “mas essa delegação pode ser alterada nas próximas eleições ou caso um dos delegatários incorra em alguma conduta grave”. Isto é verdade. Mas ter a posse e exercício do poder também significa a possibilidade de usá-lo para alterar as condições de operacionalidade do próprio poder. Tal situação deixa o titular em condições de extrema desvantagem , já que não tem acesso direto à sua propriedade (poder), bem como não detém as condições plenas de evitar um desvirtuamento das condições de exercício do próprio poder, seja em função de interesses predominantes de outros titulares que viram suas projeções plenamente satisfeitas, seja em virtude de não possuir a coerção “legítima”. Chegamos ao terceiro equívoco: quem delega exercício, delega também o próprio poder em si. Poder sem possibilidade de coerção não passa de um título vazio e ineficaz.



Em terceiro lugar, a própria atribuição ao povo da titularidade e não do exercício é arbitrária. Trata-se de uma ficção que nasce com o Estado e remonta à falida doutrina do contrato social, a qual já criticamos em outro ponto (ver Reflexões Libertárias). Quarto erro: o poder dos indivíduos, e não do povo, (caso o leitor já tenha se convencido dos males que um termo tão vulgar e comumente usado como “povo” pode trazer) não nasce com uma entidade chamada Estado, e dela não depende para existir. Tanto titularidade como o exercício da liberdade individual em suas diversas manifestações lícitas são naturais ao homem e integram-lhe o conceito de dignidade. A ideia de um contrato social é tão frágil como impraticável, já que se considerada de modo coerente exigiria uma periódica renovação do consentimento dos contratantes acerca do objeto de acordo.



2.4 O conceito de povo é imoral.



Se o conceito de povo invariavelmente refere-se a aspectos coletivistas como um “todo”, uma “soma” ou um “conjunto”, isto significa que, antes de qualquer observação, o ser humano como individualidade é suprimido. Isto é um dado inegável.



Além disto, a noção de povo permite uma “funcionalização” e o emprego de doutrinas utilitárias, sobretudo, em sua acepção democrática. Pois se o povo para funcionar como fonte de poder em uma concepção democrática tem necessariamente de ser visto como a vontade predominante ou da maioria, então a minoria é o instrumento para toda a realização (democrática?). O utilitarismo, como bem vislumbrou Nozick, não faz nada além de usar algumas pessoas em benefício de outras[8]. Noutras palavras, o indivíduo, supostamente titular do poder, cujos interesses não são contemplados pelo exercício dos programas estatais acaba sendo um mero objeto para a realização de objetivos que satisfazem a outros grupos de indivíduos.



Conclusões


Feitos estes apontamentos, fica claro que o termo povo nada mais é do que um lugar argumentativo suscetível dos mais diversos conteúdos, exceto aquele que poderia lhe dar algum significado, a saber: a realização voluntária e lícita dos objetivos de cada indivíduo. Para designar este fenômeno, contudo, um vocabulário libertário é não só mais adequado como compatível com uma ética que preserva a dignidade humana, no sentido de não fazer do ser humano um objeto ou meio para a realização de objetivos não consentidos por este.



Ser do “povo” funciona como uma espécie de coringa e senha descarada para se conseguir a satisfação de um interesse às custas de um outro alguém, que evidentemente não pertence ao povo neste sentido. E outra não é a razão pela qual o “povo” não sai de moda em séculos.

O empresário (pequeno ou grande) quer “ser do povo” a fim de conseguir subvenções do governo, medidas protecionistas contra empresários mais eficientes, pois, afinal de contas, se o seu produto é vendido, é sinal de que (mais uma vez) o “povo brasileiro” é um povo vencedor.

Minorias também querem “ser do povo” no intuito de conseguir impor suas ideologias a quem não lhes dá crédito através da feitura de leis, dotadas do poder de coerção estatal. Claro. Tudo em nome de um país de todos, como diz a propaganda oficial.

O político atormentado por delírios de poder e grandeza deseja primeiro, “humildemente” ser do povo. E uma vez eleito, deseja ardentemente “ser o povo”... sua mais acabada personificação.

Qualquer um quer “ser do povo”, pois mais vale ser do povo que ter uma carteira de identificação. Mais vale “ser do povo” do que para tal ter procuração. E se o leitor até aqui não logrou uma definição, faço sem titubeio pública e notória minha singela opinião: “ O povo, nota essencial da democracia, é composse pro indiviso[9] de todos em toda e qualquer propriedade, inclusive da liberdade. O povo é mesmo esse lugar comum, onde semântica e literalmente somos todos um e, por isso mesmo, ninguém.





Texto escrito por Marco Antonio Santos Reis.






























[1] ABBAGNANO, Nicola. Dicionário de Filosofia. Ed.Martins Fontes, 2007, p.916.

[2] ZIMERMANN, Augusto. Curso de Direito Constitucional. Lumen júris,2002, p. 27

[3]De República, I, pp.25, 39. A concepção de Cícero é, contudo, alicerçada num direito natural e não no arbítrio. Baseada, pois, num direito natural racionalista.

[4]Qu'est-ce que le Tiers-État ? — TOUT
Qu'a-t-il été jusqu'à présent dans l'ordre politique ? — RIEN
Que demande-t-il ? — A ÊTRE QUELQUE CHOSE.

[5] Ressalte-se que o referido presidente pertence a um partido que incorpora esta relação ideologicamente dividida em classes, a saber: o partido dos trabalhadores.

[6] Ressalvado o caráter evidentemente messiânico e arrogante que o Presidente arroga a si mesmo, há um pouco de razão na identificação do povo com aqueles de menor riqueza. Do contrário, expressões como “zé povinho” e “ fulano é povão”, não existiriam entre nós.

[7] Uma passagem do Código penal alemão acrescida em 1935 é exemplo excelente para os fins aqui colimados. Eis o seu artigo 2º do RStGB (Reichstrafgesetzbuch) : “ Bestraft wird , wer eine Tat begeht, die Gesetz für strafbar erklärt oder die nach dem Grundgedanken eines Strafgesetzes und nach dem gesunden Volksempfindungen Strafe verdient”. Tradução do autor: Será punido quem cometer um ato definido como crime pela lei penal alemão ou de acordo com a ideia fundamental da lei penal e do são sentimento do povo seja merecedor de pena.

[8] Anarquia, Estado e Utopia. Jorge Zahar, 1974, p. 42 e SS.

[9] Termo que designa a hipótese de dois ou mais indivíduos possuírem uma parte ideal de um mesmo bem, sem que se saiba qual a parte que compete a cada um. Todos exercem ao mesmo tempo, os poderes de fato sobre a totalidade da coisa.

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